Crônicas e outros bichos

MEUS ENCONTROS COM A PALAVRA
(Nê Sant'Anna)


Quando era criança e estudava na quarta série descobri Cecília Meireles. Era 1976, o Brasil vivia uma ditadura e eu morava numa cidade do interior paulista cujo primeiro nome foi Liberdade e posteriormente Iepê.
Lá em 1976, num dia em que não suportava mais a aula de Educação Moral e Cívica, descobri no fundo de um armário uma antologia de poemas. O livro era velho e suas páginas já amareladas, mas as palavras e a ilustração da poesia Cantiga das Flores, de Cecília Meireles, eu nunca esqueci.
Foi meu primeiro encontro com a palavra em forma de poesia. Foi meu primeiro grito de liberdade.

Mulher in Flor – Rosa  


Cantiga das Flores (Cecília Meireles)

La la la ri la la la la
Já não se escutam rumores
a noite não tarda a vir.
Vamos embalar as flores?
As flores querem dormir

La la la ri la la la la
Os cravos, lírios e rosas
ao vento brando de outono.
Cravos, lírios e rosas
vão fechando de sono

La la la ri la la la la
Vamos embalar as flores
as flores querem dormir.
Já não se escutam rumores

e a noite não tarda a vir





Insight: SOBRE A ATUALIDADE
(Nê Sant'Anna)

É IMPERATIVO em nossos dias: ser politicamente correto, trabalhar com prazer, cuidar da casa (sem usar sacos plásticos), educar os filhos com liberdade e limites, participar do processo educacional, entender de política, taxa de juros e níveis de colesterol, acompanhar a vida das celebridades e de outros mortais via Facebook, Twitter e afins, zapear pela TV aberta e a cabo, ler alguns best sellers, jornais e revistas semanais (de preferência no tablet para não perder tempo), ser criativo, autocrítico, pró-ativo, comunicativo e sem perder “la ternura jamás” liderar com firmeza e competência equipes de trabalho ou de qualquer outra coisa (não faltam opções de ONGs, O.S. e Associações para todos os gostos e ideais), cuidar do corpo, do cabelo, da alimentação, das unhas (cores de esmalte proliferam como vírus), dormir 8 horas e acordar de bom-humor para malhar, mesclar peças fashion e de designer com artesanato e produtos de escala industrial (seja na moda ou na decoração), ser autêntico, mas saber conviver em sociedade, viajar para lugares clássicos e exóticos (claro que é imprescindível achar o máximo as experiências com o luxo e o lixo e tirar lições dos atrasos nos aeroportos e outros “atrapalhos”, se for muito antenado(a), dessa experiência vital para a humanidade, você poderá produzir uma série de palestras de autoajuda), ter um parceiro(a) com o(a) qual flua o diálogo, mas sem discutir a relação e é claro, não deixar a rotina invadir a cama (é altamente recomendado achar tempo para ler sobre o assunto e frequentar sex-shops, terapeutas etc.), manter uma vasta rede de contato e de amigos e dar atenção a esses relacionamentos, e nunca, jamais... deixar-se dominar pelo stress!




A ÓPERA MENSALÃO
(Nê Sant'Anna)

O julgamento do Mensalão poderia ser uma ópera. A cada nova sessão, argumentos e “novas” palavras surgem e surpreendem.  No primeiro dia, quando o procurador disse versos de Chico Buarque, imaginei vários diálogos tendo sua música como pano de fundo envolvendo acusados, advogados e plateia. A imaginação tomou forma de poemetos, inspirados na performance dos advogados durante o desenrolar do julgamento.

O José Dirceu poderia cantar para o Roberto Jeferson:

O ROBERTO

O Roberto levou meu sorriso
No sorriso dele
Levou junto com ele o que é de direito
E o que não era não
Entregou o esquema, o meu papel,
E além de tudo
Manchou muito
Minha reputação!
O Roberto
Levou junto com ele
Os meus quatro anos e o meu canetão,
E não contente
Me acusou do Mensalão!

O Roberto poderia então responder cantando, já que é um estudioso do belo canto:

Exijo respeito,
Não sou um mensaleiro
Chego a abrir o peito
Quando aparece um doutor
Que não entende que só fiz um caixa 2
E me acusa de ser um usurpador!

Então os advogados, dependendo das facções dos clientes entoariam em coro:

O procurador é bamba
Na procuradoria
Mas nunca arrecadou dinheiro
Nunca fez campanha!

Um advogado que não conhece a obra do Chico e não sabe cantar, não perde a pose e declama com emoção, munido de um teclado como objeto cênico:

Estou trazendo este teclado
Para o tribunal
Pois máquina de escrever
É coisa já inexistente
Porque quero provar, sem sombra de dúvida alguma
Que sobre uma pobre batedeira de cheque
Como foi minha cliente
Não pode pairar
Acusação nenhuma.

A plateia comovida canta:

Não se afobem não
Que nada é pra já
E mentiras podem pairar
Milênios, milênios...
No ar.

E para encerrar os trabalhos do dia, em ritmo de samba entoam animadamente:

Agora o que já é normal
É o que dá de malandro regular, profissional
Malandro com gravata, com contrato e capital
Que nunca se dá mal!





Fecham-se as portas e o salão é preparado para a ópera do próximo dia. 

Nê Sant’Anna

07 de agosto de 2012




PROGRAMAÇÃO DE FÉRIAS
(Nê Sant'Anna)

Eu andava, distraído, pelo shopping olhando vitrines.  Enquanto batia os olhos no imenso cartaz da agência de viagens, que prometia a logística perfeita para a realização de qualquer desejo, observei um senhor, de uns prováveis setenta anos, dirigir-se a sorridente e elegante vendedora que o abordara. Assim que se sentaram, como quem não quer nada, me acomodei numa poltrona e, aparentemente mergulhado na leitura do grosso catálogo da agência, pude ouvir o inusitado diálogo:
– Pois não, seu Roberto. Certamente encontraremos o local perfeito para o senhor. O senhor pretende viajar sozinho ou com a família?
– Sozinho. Uma espécie de ano sabático.
– Entendo. Talvez o senhor esteja pensando em uma viagem para o exterior, ou, até mesmo conhecer ou revisitar algum paraíso turístico...
– Não, minha filha, tudo muito longe e complicado. Passaporte, vistos, bagagens...
– Ora, nossa agência providencia tudo. Basta o senhor fazer as malas e aproveitar.
– Pois é, fazer as malas! Uma coisa maçante. A gente sempre leva coisas de mais ou de menos. E pior que fazer malas é desfazê-las.
– Isso também poderá ser resolvido. Temos alguns funcionários que realizam esse tipo de tarefa.
– Nossa, que maravilha; estou começando a ter esperanças que nesta agência encontrarei a programação de férias que desejo.
– Com certeza! Diga-me, seu Roberto, qual o seu sonho para essas férias?
– Não me importa o lugar. Quero tirar férias de mim mesmo!
A solícita vendedora embranqueceu por um instante, mas logo retomou a atitude profissional sugerindo vários roteiros. O potencial cliente agradeceu, apertou-lhe a mão e saiu.

Eu, curioso, segui seus passos até o estacionamento. Notei que andava devagar, meio cabisbaixo, e, algumas vezes, suspirava como quem acorda bruscamente de um sonho bom.




ÂMEL MASSIR!  (JESUS RESSUSCITOU!)
(Nê Sant'Anna)

Às vezes, pensamos que milagres ou manifestações de Deus são coisas complexas ou recheadas de “efeitos especiais”. Os acontecimentos que presenciei e vivi durante a madrugada que antecedeu a morte de meu tio Omar, me fizeram experimentar e testemunhar a simplicidade, a beleza, o amor e o amparo que Deus concede a todos nós, seus filhos.
Horas antes de morrer, meu tio disse em árabe: “ÂMEL MASSIR!”. Só consegui entender o real sentido dessa frase horas após o seu sepultamento, entre outros fatores, por ter lido, naquela madrugada, o Salmo 103.
Devido a um encadeamento perfeito e providencial de fatos, tio Omar, extremamente debilitado, conseguiu dizer Âmel Massir à sua irmã, tia Nale, única pessoa naquele quarto de hospital que poderia compreender e traduzir suas palavras.
Uma frase curta em árabe, mas capaz de expressar o que ele já não tinha forças para dizer: “Jesus está aqui comigo, Ele é real! Não fiquem tristes porque estou a caminho da eternidade, Jesus existe, me ampara e a morte não precisa ser temida!”.
Sinto que tio Omar foi instrumento de Deus, nos momentos que antecederam sua morte, para transmitir a todos nós a essência simples da fé. Eu compartilho com vocês o que vi e o que senti após aquela madrugada – um momento solene de morte –, para que a alegria e a certeza da eternidade da vida possam sempre ser anunciadas e nossos corações confortados e preenchidos pelo Espírito Santo, pois, como tio Omar disse: “ÂMEL MASSIR!”, JESUS RESSUSCITOU!  Portanto, não há motivo para temores, a benignidade de Deus vai de eternidade a eternidade (Salmo 103).
***
Uma semana após a morte de meu tio, reflito sobre a força das palavras arquivadas em nossa memória afetiva e nos mecanismos psicológicos de acessá-las em momentos decisivos, quando precisamos exprimir sentimentos profundos, que perpassam nossa alma. Creio que em seus momentos finais, tio Omar “selecionou” de sua memória a expressão ouvida e dita inúmeras vezes e que, naquele exato momento, além de assumir um significado profundo, lhe possibilitou, com economia de palavras, externar todas as suas emoções, confortar a irmã, a esposa e as filhas e também deixar seu testemunho de fé em Deus.

 Esse testemunho, como último e maior presente de meu tio, ficará gravado para sempre nas paredes de minha memória afetiva.  Graças à força das suas atitudes e palavras, tenho a convicção plena que Âmel Massir e estava ali, naquele quarto de hospital, naquela madrugada do dia 1 de fevereiro de 2015 e tio Omar O enxergava, talvez com os olhos da alma, mas O enxergava e anunciou a presença de Jesus a todos nós, através da curta expressão em árabe, pinçada inteligentemente de seu cérebro, que se manteve lúcido até o seu último instante de vida terrena. 



COMO DESCASCAR UM ABACAXI
(Nê Sant'Anna)






Domingo do segundo turno das eleições de 2014: Meu filho e a namorada olham para os abacaxis maduros na fruteira com cobiça. Sugiro que descasquem o maior. Eles dão mil desculpas. Eu abro uma gaveta e, munida da ferramenta ideal, descasco o abacaxi em, no máximo, três minutos. Os dois se espantam e eu explico: “aprendi a técnica em uma crônica do Paulo Mendes Campos”.
Deixo o abacaxi, nu e fatiado, exposto em uma travessa e observo o Brasil se desnudando através dos noticiários e das redes sociais. Todas as contradições e preconceitos viscerais e seculares estão expostos e condimentados pelo clima de fim de campeonato que acompanha as eleições. Minha avó Maria repetia um ditado popular “quando a miséria bate à porta, o amor pula a janela”! Nada mais pertinente; em épocas de crises ou mudanças, faz parte do ser humano procurar culpados, eleger heróis ou bodes expiatórios, foi assim em centenas de momentos históricos, como a perseguição aos judeus pela Alemanha Nazista, só para citar um exemplo.
Portanto, não estranhei nem um pouco as enormes discussões, de ambos os lados, carregadas de preconceito e aquele velho ódio que não ultrapassa a primeira rodada de barganhas “para o bem do Brasil”. Lembrei-me de uma frase astuta de Lima Barreto, na qual ele pondera que o diploma universitário veio substituir no Brasil republicano os antigos títulos de nobreza, mudava-se o instrumento, não o pensamento, muito menos antigos paradigmas.  Aliás, mudanças de fato, demoram. Basta observarmos alguns dos campeões de votos para as Assembleias Estadual e Federal. O Brasil, apesar do Carnaval e da exposição de coxas e afins, é preconceituoso sim, é hipócrita sim e, a grande perversidade, é que isso se esconde debaixo de uma grossa casca de liberalidade, respeito às diversidades e cordialidade. Talvez não seja gratuitamente que o abacaxi seja quase um símbolo do país.
Mas, voltando ao meu prosaico abacaxi (que nem tão doce estava), compartilho com vocês que a melhor ferramenta para descascar essa fruta consiste em uma simples faca de pão!  Basta não ser teimoso e não ter medo de experimentar novas possibilidades para manjados objetos, afinal, a roda já foi criada há muito e a faca de pão também, bem como a sacada do “tio Karl”: “os homens mudam os modos de produção, mas não abrem mão das suas conquistas materiais”. Alguém duvida? Então pense se, por exemplo, você voltaria a lavar suas roupas em uma tábua na beira do rio ou abriria mão do seu vaso sanitário! E – não duvide – as “variáveis” preconceito, conforto, segurança, pseudos religiosidade e moral ilibada, poder e autoestima, além de muita grana, giram a roda do mundo e também das terras tupiniquins, carregadas de abacaxis, insistentemente, e na maioria das vezes propositalmente, descascados com a ferramenta errada (ou a mais cara ou conveniente para a ocasião).

Descascar um abacaxi é fácil. O resto? Quem viver verá!





Insight: COPA, CERA E HIPNOSE
(Nê Sant'Anna)


Nasci em setembro de 1966, ano de Copa do Mundo. Da Copa de 1970 quase nada recordo, apesar do tri brasileiro. Em 1974, durante um dos jogos, no qual a Seleção Brasileira perdia, minha mãe, torcedora fanática, e todos que assistiam aquele jogo em nossa casa – primos, tios, amigos e vizinhos – roíam as unhas em desespero. Quando o Brasil marcou um gol, ficaram alucinados e durante a comemoração, que começou na sala e acabou na varanda, alguém me empurrou e eu rolei escada abaixo.
Naquela época, era hábito encerar todo tipo de chão. O piso e a escada da nossa varanda, de cimento queimado vermelho e cacos de ladrilho, tornava-se um “sabão”. Por sorte, apesar da dor, só torci o braço e, por azar, o Brasil perdeu aquele jogo e aquela Copa.
Minha mãe e o resto da torcida - a doméstica e a brasileira, ficaram inconformados e como é comum nessas ocasiões, procuraram culpados e milhares de explicações foram levantadas e debatidas: “se o Pelé estivesse jogando imporia respeito, mas ele não quis se sacrificar pelo Brasil; os jogadores se apavoraram; o juiz roubou” e por aí afora elencavam argumentos para explicar tão grande infortúnio.
Compreendi naquele dia, a duras penas, o fascínio e a loucura que o futebol e a Copa podem exercer sobre as pessoas porque só cuidaram do meu braço depois que o jogo terminou.
Décadas depois, na última Copa, estava no Rio de Janeiro e pegaria a ponte aérea Rio-São Paulo justamente no dia do primeiro jogo do Brasil na Copa de 2010. Foi difícil encontrar um táxi para fazer o trajeto do hotel ao aeroporto Santos Dumont. Quase todos se preparavam para ver o jogo, e os que podiam encerraram o expediente mais cedo.
O taxista que me levou ao aeroporto estava indignado, achava um absurdo o efeito que a Copa produzia nas pessoas, incluindo seus próprios colegas taxistas, e mais absurdo ainda, a Copa de 2014 ser no Brasil. Esse “filósofo” ou “vidente” foi destilando sua revolta social e política durante todo nosso pequeno trajeto, e hoje percebo que ali já estava a semente das manifestações de rua que eclodem Brasil afora desde junho do ano passado.
Quando embarcamos, um passageiro estava extremamente nervoso com a expectativa do resultado do primeiro tempo do jogo que aconteceria justamente enquanto voaríamos do Rio a São Paulo. A aeromoça tratou de acalmá-lo, prometendo informar-lhe sobre o desenrolar da partida. 
Ao sobrevoarmos São Paulo, vi uma paisagem inédita pela janelinha do avião. A imensa cidade parecia desabitada; pouquíssimos carros pelas ruas, mas pouquíssimos mesmo, de modo que era possível observar a cor do asfalto e o desenho das ruas.
Uma onda de terror naquele momento me percorreu. De repente, o longínquo tombo de 1974 voltou à memória e, mais uma vez, me dei conta do poder quase hipnótico que as Copas exercem no Brasil. Decidi ser a última a desembarcar e desci com cuidado a escadinha. Ao entrar na sala de embarque do aeroporto de Congonhas, quase não havia barulho, apenas pessoas fitando, numa espécie de transe coletivo, o jogo exibido, sem som, em várias telas espalhadas por todos os cantos.

Mais uma vez, tratei de prestar atenção por onde pisava, enquanto aguardava o meu próximo embarque.











O velho cão*
Nê Sant'Anna




Nunca mais o encontrei. Nestes dias em que nada faz o menor sentido, voltou-me à memória a sua figura digna: o velho cão. A dignidade do velho cão vira-lata exausto, com uma perna quebrada subindo a rua. A cabeça ia erguida, apesar da dor estampada a cada passo. Na latia, não mendigava comida, não revolvia as latas e os sacos de lixo, apesar de não ter dono, de ser um cachorro de rua.
O velho cão subia a rua íngreme majestosamente, apesar da perna quebrada, apesar da fome estampada nos ossos aparentes. O velho cão ia silencioso, consciente do seu destino, da sua existência que chegava ao fim. Não aparentava amargura, simplesmente caminhava, como se soubesse quais trajetos deveria fazer. Todos os dias parecia percorrer os mesmos lugares, arrastando a perna, mas não arrastando a si mesmo.
Nunca me olhou, talvez pressentisse a angústia que me causava, mas sempre, há mesma hora, subia a minha rua, dignamente, sem a menor pena de si mesmo.
Descobri que algumas pessoas o alimentavam. Ele comia sem estardalhaço e saía mansamente. Alguns pensaram em aliviar seu sofrimento, mas acho que no fundo não tiveram coragem, o velho cão não inspirava piedade, parecia querer subir as velhas ruas até o fim, parecia até sentir prazer em subir as velhas ruas, se despindo dos seus desenhos, seus postes, suas árvores.
Desapareceu naturalmente, como as chuvas, como o sol ao fim do dia. Foi subindo menos as ruas, fomos esquecendo dele, até que não o vimos mais.
Nunca me afeiçoei a animal algum, do velho cão tenho às vezes inveja profunda e o maior exemplo de sabedoria em relação ao tempo, as dores, a dignidade e a própria vida.


*Crônica selecionada para o VI CLIPP -  Concurso Literário de Presidente Prudente 2012







Pouso
Nê Sant'Anna




O velho comunista sentia-se fraco; caminhava meio trôpego, esforçando-se para não desmaiar na calçada. O sol ardia, a roupa pesava, sua cabeça latejava, a fome e a náusea misturavam-se; o desespero e o alívio da morte intercalavam-se a cada passo, a cada respiração difícil, a cada tremor das velhas juntas.
O velho tentava não chorar, tentava recordar-se dos bons dias, dos velhos sonhos, dos livros, das mulheres, das guerrilhas vividas e imaginadas; mas, a cada passo a dor e a tontura aumentavam.
O velho, numa última tentativa de auto-controle, começa a pensar na desgraça de não haver um sistema de saúde eficiente no país; por um momento, sente-se rejuvenescido, tem ímpetos de discursar, energiza-se como por encanto. Mas a dor e a tontura o chacoalhavam; o velho comunista sente-se só, uma sensação de desamparo invade a velha alma, uma revolta sacode a mente controlada, naquele momento o velho queria assistência, bem lá no fundo, o velho sonha com um hospital particular, com uma equipe médica confortando e abreviando-lhe o sofrimento, alguém segurando sua mão...
Naquele instante o velho suspirou por não ter nada, por não ter conseguido ver seus ideais tomarem forma, pelo filho que fugiu...
O velho comunista escorava-se numa árvore em frente ao pronto-socorro, olha a fila imensa, os rostos tristes, pensa em pedir ajuda pensa em suplicar um último momento de alívio, mas desiste. Senta-se na calçada, deixa as lágrimas caírem em profusão, contempla mais uma vez a incoerência a sua volta, não se conforma e chora impotente saldo, o lamento e a revolta de sua vida inteira.
O velho comunista solta um gemido, tosse, a dor e a tontura tomam conta do seu corpo; sente sede, mas contenta-se com a própria saliva; deita-se na calçada suja, sente um último e doloroso espasmo, o alivio das dores e a escuridão trazem paz, o velho simula um sorriso, relaxa o corpo, finalmente inundado por uma sensação de liberdade.







DEZEMBRO... EM MÚLTIPLOS OLHARES
Nê Sant'Anna

1-      DOLORES

O mês começara. Mais uma vez era dezembro. Mais uma vez os sinos, a correria, o sorriso amarelo, a canseira, os enfeites obrigatórios, a roupa domingueira, o perfume doce desencadeando crises de enxaqueca.
Natal nos trópicos, Natal a 40 graus. Natal, já sem crianças. Natal de lembranças, constatações e pouquíssimas esperanças no futuro. Ou melhor, esperanças só no futuro eterno e uma urgência em se aquietar e mergulhar na paz divina, sem sinos, sem correria, sem cobrança.

2-      MARIANA

Finalmente Dezembro! A correria boa correndo feito fogo nas veias. Mil detalhezinhos a preparar, dezenas de páginas de revistas para folhear. Cada enfeite diferente, qual escolher? Essa era sempre a parte mais difícil, porém a que mais adrenalina lhe provocava.
Presentes em muitas sacolas, laços sempre exerceram fascínio sobre ela. Era uma espécie de presságio: o futuro viria embrulhado para presente e, sem muito esforço, bastaria desembrulha-lo com cuidado e paixão. Não, ela nunca duvidaria disso, nem deixaria de fazer planos, muitos planos.
Com um cansaço bom, terminou de pendurar a última bola vermelha na árvore de natal, tomou distância e sorriu gostando do resultado final. A vida não podia ficar ruim em dezembro! E o ano novo? Seria radiante, com certeza, como aquela árvore de natal! E se por acaso não fosse, outro dezembro chegaria.

3-      NATÁLIA

Era 24 de dezembro. Ela descia a escadaria da velha igreja em seu quinquagésimo aniversário. Todos os anos, há vinte e cinco anos, cumpria aquele ritual. Depois de agradecer a misericórdia de Deus, ela se dirigia a uma pequena rua comercial, naquela data, sempre apinhada de gente. Era o momento de comprar o seu presente, um momento só seu e que não podia ser antecipado. Os presentes dos filhos e do marido já estavam sob a árvore de natal, agora era a hora de saborear o seu presente, sempre o mesmo há vinte e cinco anos.
Escolheu-o com uma disfarçada lágrima e rapidamente caminhou até sua casa e já em seu quarto, com a porta trancada, desembrulhou a caixa comprida e delgada com sofreguidão, como se desconhecesse seu conteúdo.
Retirou a boneca, vestida esse ano de dourado, embalou-a e sentiu seu cheiro doce mesclado a plástico. Uma calma percorreu seu corpo, a velha sensação que se repetia a mais de duas décadas. Ela guardou a boneca no armário e começou a se vestir para a ceia. Ceia farta, sem nenhum resquício da pobreza extrema que a humilhara por muitos anos.

4-      JUSSARA

A roupa branca sobre a cama nem de longe remetia ao seu estado de espírito. Os pequenos brincos prateados e o anel de pedra azul turquesa, completariam a produção simples e inegavelmente sofisticada.
Ela era sofisticada.   Os cabelos curtos e o porte elegante transmitiam determinação e refinamento, talvez, até uma pitada discreta, e falsa, de altivez exacerbada.
Aos poucos, o roupão que a envolvia cai sob seus pés e suas mãos, ligeiramente trêmulas, apanharam a roupa e começaram a firmar-se. O anel azul foi o último item a ser colocado em seu corpo.

Ela desce as escadas com um discreto sorriso nos olhos e nos lábios. Aceita o braço oferecido pelo amigo e apertando discretamente o anel, promete a si mesma que nenhuma bebida alcoólica passaria por sua garganta, por mais uma noite, por mais um dia, por mais um ano. Com o canto do olho direito, observa o presépio natalino e, discretamente, fecha os olhos e pede força e coragem, numa última prece antes do primeiro estampido dos fogos que saudariam o ano novo.




 ENCOMENDAS
Nê Sant'Anna

 _ Por que não um poema infantil redondinho, cheio de rimas, politicamente correto e bem bonitinho?
_ ...
_ Por que não uma historinha simples, um romance de poucos personagens, lágrimas e algum sangue?
_ ...
_ Por que não umas frases fáceis, cheias de motivação e que despertem algum tesão?
_ ...
_ Por que não uma música simplesinha, três, quatro acordes e pitadas leves de sacanagem?
_ ...
_ Por que não um blog de receitas!
_ Receitas? Que tipo de receitas?
_ De qualquer tipo, poeta sem imaginação! Receitas light, de sexo, de criação de filhos ou bichos, tanto faz, você escolhe. Pra mim, basta acontecer.
_ Não sei se conseguiria tal proeza, estou em crise...
_ De inspiração?
_ Talvez...
_ Hum... Por que não chamar de “bloqueio criativo” e fazer umas palestras sobre superação?





 INSTINTOS
Nê Sant'Anna

Chegou um dia em que ela não pode mais mentir a si mesma, era a velha lei da selava: o instinto de sobrevivência!
Ela sentia-se morrendo aos poucos, uma pequena agonia todos os dias. As palavras dele incomodavam, e o seu andar lhe deixava louca. A sua simples presença a irritava e quando chegava a hora dele voltar era um suplício diário.
Ela sabia! Nada, nada mudaria. Variações do mesmo tema, do mesmo cheiro, mesmo do mesmo, do mesmo.
Mas, ela já estava fraca. O instinto de sobrevivência falhara, ou teria sutilmente evoluído?




DR – discutir a relação
Nê Sant'Anna

Ela sabia de todas as traições do marido: reais, virtuais, sexuais, sentimentais. Não se enganava, eram sentimentais, sim. Há muito ele procurava consolo em outras camas e em outras conversas, para beber palavras que o fizessem sentir-se macho, interessante, inteligente...
Quando ele chegava das aventuras querendo - porque no fundo era o que ele queria - uma boa briga, ela se virava e dormia ás vezes sem dizer palavra, ás vezes oferecendo-lhe desculpas perfeitas, ás vezes simplesmente ignorando-o. Mas ela nunca fingia dormir; não perderia por nada o prazer de ver a cara do marido, marcada por expressões de frustração e raiva. Ele ansiava por uma cena, inseguro por natureza, como as descritas pelos amigos: muita DR, muito choro, muita culpa de ambas as partes, depois sexo e mais DR. Isso ele nunca teria, o jogo era outro, psicológico e perverso, como os filmes que ela gostava e ele nunca entendera.
O marido era um sujeito comum, um cidadão comum, “daqueles que se vê na rua, falava de negócios, ria, via show de mulher nua”, Belchior já o desnudara em sua canção. Ela adorava essa música, sentia espasmos e calafrios quando a ouvia e cantarolava para o marido, mas ele nunca prestou atenção na letra.
Enquanto o marido definhava, ela renascia. Nunca fora tão vital! Entrava no e-mail dele e lia as idiotices que escrevia para as “amantes”. As respostas eram ainda piores, mas diziam tudo que ele gostaria de ser: bonito, gostoso, interessante, de medidas generosas etc., etc.
Depois de um tempo, bisbilhotar no e-mail alheio perdeu a graça, eram textos previsíveis como ele, procurando e encontrando mulheres previsíveis como ele. Sentiu pena do marido, mas pena por quê? - raciocinou, ele deveria estar feliz, saciando sua autoestima.
Estava enganada. O marido só ficaria pleno com uma cena. Por que só ele? Todos os amigos desfrutavam de mulheres ciumentas! Todos os amigos eram obrigados a inventar desculpas! Ele não! Será que era tão desprezível assim? Só merecia descaso? Passou a deixar pistas evidentes das traições: notas de motel, torpedos abertos, marcas de batom...
Ela gostou! Por um tempo achou graça naquilo, mas logo tudo foi ficando monótono outra vez. A única diversão era a agonia do marido, a cotidiana espera por uma reação dela, mas isso ele não teria! Não abriria mão do único prazer daquela relação...
Não que ela o quisesse mal, não, longe disso, ela até o achava um bom cara. Um cara... previsível!




Foto: Nê Sant'Anna




AO MEU TIO OMAR
Nê Sant'Anna

                Hoje me sinto órfã. Órfã do tempo. De um tempo em forma de ninho, no qual eu sabia contar com mãos protetoras. Meu último elo masculino desse tempo se vai. As lembranças de minha infância ficam, entre muitas, meu tio Omar estendendo as mãos e carregando para mim pesadas sacolas de mercado, com esse gesto, por muitas vezes repetido, aliviava o peso dos braços da menina que um dia fui.
                Existe uma fábula oriental que diz que o tempo é um barqueiro e somente esse barqueiro pode fazer passar pelo rio da vida os outros sentimentos, como o amor, a saudade, a angústia... Penso, entretanto, que o que esse barqueiro não consegue passar é ele próprio, pois o tempo sempre permanece, em forma de memória. E a memória nos disponibiliza seus arquivos, em constante movimento, e se transforma com os legados do próprio tempo.
                Então, sei que sempre poderei revisitar a casa alegre de minha avó paterna, com sua sensação de proteção, aconchego e carregada de tios, sotaques e cultura libanesa. Ela sempre estará lá, gravada nos afetos da memória, porque esse tempo um dia existiu e em decorrência dele, muito do que sou.
                A última lembrança e lição de meu tio Omar frente ao seu próprio tempo, compartilhado com um câncer agressivo e doloroso, foi a sua resignação elegante – elegante, mas em nenhum momento covarde ou desesperada. Nesse tempo final ele viveu corajosa e intensamente, disseminando, com a sua postura, exemplos de fé, esperança, amor a vida, ao próximo e a família. Sentimentos, de certa forma, materializados simbolicamente em sua horta e no jardim, iniciado nos últimos meses do seu tempo.
                Assino esse texto, em agradecimento a todos os “arquivos de afeto” que o Omar (raramente o chamava de tio) me legou vida afora, com meu nome de menina; um nome que carrega as facetas múltiplas e fragmentadas do caldo cultural e existencial que sou e, que nesse exato momento, me transporta à casa de minha avó paterna, de quem herdei uma boa dose de teimosia, assertividade, determinação e o meu primeiro nome.
                Nessa madrugada, ao chegar do hospital, encontrei conforto para o sentido da vida e da morte do Omar e de todos nós em versículos do Salmo 103, que falam sobre o Tempo e o Amor de Deus: “Mas é de eternidade a eternidade a benignidade do Senhor sobre aqueles que o temem”.

Nejme Maria Zakir

Iepê 1 de fevereiro de 2015.









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